No corpo e no espírito da mulher indígena: o desmatamento e a violência de gênero
- nayarakobori
- 15 de fev. de 2022
- 5 min de leitura
Publicado originalmente em: https://ribeiraofeminista.wordpress.com/2019/08/06/no-corpo-e-no-espirito-da-mulher-indigena-o-desmatamento-e-a-violencia-de-genero/
Primeira Marcha das Mulheres Indígenas será realizada entre 9 a 13 de agosto, em Brasília
O livro “Mulheres que Correm com Lobos”, de Clarissa Pinkola Estés tem a premissa de invocar a ancestralidade, através os espíritos responsáveis pelo nosso amor próprio e pela valorização da própria história. Nós, mulheres, somos treinadas desde a infância para a obediência e docilidade, acabando por abandonar o instinto selvagem, ou o nosso “sexto sentido”, bem como a sabedoria ancestral e natural feminina.
Essa pequena paráfrase visa contextualizar a questão de gênero da mulher indígena, que se vê permeada em um mundo recheado de estereótipos, mas que na verdade é um canal de ensinamentos. As culturas dos povos indígenas sofreram profundas modificações, uma vez que dentro das etnias se operaram importantes processos de mudança sociocultural, enfraquecendo sobremaneira as matrizes cosmológicas e míticas em torno das quais girava toda a dinâmica da vida tradicional. Diante disso, a mulher indígena é, até hoje, vista como “objeto sexual dos militares em Roraima, ou mão-de-obra escrava em Mato-Grosso e Nordeste brasileiro”, como diz Eliane Potiguara (ver matéria aqui).

Eliane Potiguara. Fonte: https://omirantejoinville.com.br/2019/07/09/leia-mulheres-joinville-comemora-dois-anos-discussao-literatura-indigena/
Dados da ONU mostram que 1 em cada 3 mulheres indígenas são estupradas ao longo da vida. É parte de uma violência estratégica, que visa desmoralizar a comunidade e fazer a “limpeza étnica”. A violência, porém, é invisível. Em 2010, registrou-se 104 agressões físicas contra mulheres indígenas; em 2014, 619 casos. E a violência está diretamente associada à exploração das florestas e recursos naturais.
A fala de Eliane Potiguara para a Revista Iberoamérica Social define bem essa situação: “as mulheres indígenas estão sendo ameaçadas, violadas em seus direitos humanos e de que maneira elas possam estar se extinguindo a partir da mortalidade materna, da mortalidade por violências físicas, por conflitos culturais, por migração de suas terras indígenas e por conflitos políticos que ameaçam suas vidas, suas famílias e o direito ao território indígena e sua cosmovisão”.
Território como parte do corpo das mulheres indígenas
Atualmente, existem mais de 300 grupos indígenas em todo o Brasil, que falam 274 idiomas, com diferentes tradições. As reservas conhecidas oficialmente representam 13% da superfície terrestre do Brasil, de acordo com a Funai.
No entanto, em um governo que descredibiliza dados científicos de desmatamento (aumento de 88% no ano de 2019, segundo Inpe), discutir a interculturalidade do movimento indígena, enquanto defensor das florestas, permeando a questão de violência de gênero é um desafio. A mulher indígena sofre não somente com a política de demarcação e exploração, mas vê seu povo ser afetado, marginalizado e discriminado. Ela sofre como mulher a violência física, psicológica e social. E sofre como indígena a desmoralização de seu povo.
Até hoje, os índios são estereotipados. É a visão selvagem, dos preguiçosos, seres não racionais, que gera a desumanização de todo um povo. A luta pela demarcação de terras é, portanto, não só uma questão meramente espacial, mas uma forma de preservação da própria cultura indígena, como direito e para combate aos preconceitos.
Os direitos dos indígenas estão garantidos pela Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, destacando que eles não podem estar sujeitos à assimilação forçada ou destruição de sua cultura. Ao menos serem colocados em risco por ações com propósito de retirada de suas terras, território ou recursos.
A Convenção sobre Povos Indígenas e Tribais (Número 169), da Organização Internacional do Trabalho (OIT), também exige que seja feita uma consulta prévia aos indígenas antes de realizar ou permitir qualquer programa de pesquisa, ou mesmo a exploração dos recursos que pertencem ao povo.
Mas, na prática, a realidade é outra.
Segundo o Conselho Indigenista Missionário, só no início de 2019, as Terras Indígenas (TIs) Arara, no Pará, e Arariboia, no Maranhão, registraram no primeiro mês do ano a invasão de madeireiros e a de grileiros que vem tentando se estabelecer no interior das áreas demarcadas (ver matéria aqui).
Neste cenário, as mulheres indígenas aparecem como uma peça fundamental. Elas estão se erguendo como lideranças, falando sobre a marginalização de seus povos e pressões sociais, sobre os direitos e políticas públicas de demarcação de terras e leis para o fim da violência, entre outros direitos básicos. É o caso da porta-voz Ro’Otsitsina Xavante. Para ela, as mulheres indígenas não são parte do povo, elas são o povo.
Na política, as figuras de Joênia Wapichana, a primeira mulher indígena na história eleita no Congresso Brasileiro, e Sônia Guajajara, líder da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) também apontam as mulheres indígenas como protagonistas da organização política. Ou seja, elas são fundamentais em todas as discussões que envolvem os povos indígenas, incluindo os processos de remarcação de terras.
Com as constantes invasões dos territórios indígenas e o recente assassinato do líder Emyra Waiãpi, de 62, na área indígena invadida no Amapá, a luta das mulheres indígenas pelo reconhecimento das condições de seu povo, ao lado das constantes violências de gênero, é símbolo de resistência.
Primeira Marcha das Mulheres Indígenas
Em abril deste ano, durante o encontro “Acampamento Terra Livre”, grupos indígenas em Brasília, as mulheres indígenas, de diversos grupos étnicos da Amazônia e de outros locais criticaram as mudanças do Governo Federal, principalmente, sobre o processo de demarcação de terras indígenas e o oferecimento de serviços de saúde. Desde então, mulheres indígenas estão se articulando para a mobilização e captação de recursos.
Durante a ATL, as mulheres indígenas decidiram pela realização da “Primeira Marcha das Mulheres Indígenas”, que irá ocorrer entre os dias 9 a 13 de agosto, em Brasília – DF. O tema escolhido leva em consideração todas as questões de interculturalidade em reconhecimento com o espaço, sendo intitulado “Território: nosso corpo, nosso espírito”. A Marcha das Mulheres Indígenas se une à Marcha das Margaridas (13 a 14 de agosto de 2019), que também atua em defesa do desenvolvimento sustentável com democracia, justiça, autonomia, igualdade e liberdade.
O objetivo da mobilização é dar visibilidade às ações das mulheres indígenas, para discutir as diferentes realidades que permeiam o povo, reconhecer e fortalecer o protagonismo indígena, bem como a capacidade na defesa dos Direitos Humanos e o cuidado com a Mãe Terra – o território em corpo e alma.

É possível contribuir com a Marcha, por meio do link: https://www.vakinha.com.br/vaquinha/apoie-o-1-encontro-de-mulheres-indigenas
REFERÊNCIAS:
AGÊNCIA PATRÍCIA GALVÃO. 1ª Marcha das Mulheres Indígenas, por Carla Batista. Publicado em 01 de ago. de 2019. Disponível em: https://agenciapatriciagalvao.org.br/mulheres-de-olho/1a-marcha-das-mulheres-indigenas-por-carla-batista/. Acesso em 02 de ago. de 2019.
FUNAI. Funai comemora empoderamento das mulheres indígenas e inovação com coordenação específica de gênero. Publicado em: 08 de mar. de 2018. Disponível em: http://www.funai.gov.br/index.php/comunicacao/noticias/4779-funai-comemora-empoderamento-das-mulheres-indigenas-e-inovacao-com-coordenacao-especifica-de-genero. Acesso em 02 de ago. de 2019.
OBSERVATÓRIO DO TERCEIRO SETOR. Resistência: os desafios das mulheres indígenas no Brasil. Publicado em 08 de abr. de 2019. Disponível em: https://observatorio3setor.org.br/carrossel/resistencia-os-desafios-das-mulheres-indigenas-no-brasil/. Acesso em 02 de ago. de 2019.
ONU MULHERES. Mulheres Indígenas. Disponível em: http://www.onumulheres.org.br/mulheres-indigenas/. Acesso em 02 de ago. de 2019.
POTIGUARA, E. Situação das mulheres indígenas no Brasil. IBEROAMÉRICA SOCIAL. Publicado em: 28 de dez. de 2018. Disponível em: https://iberoamericasocial.com/situacao-das-mulheres-indigenas-no-brasil/. Acesso em 02 de ago. de 2019.
RADLER, Juliana. Mulheres indígenas dizem basta à violência e à invisibilidade. Instituto Socioambiental. Publicado em: 23 de mai. de 2018. Disponível em: https://www.socioambiental.org/pt-br/blog/blog-do-rio-negro/mulheres-indigenas-dizem-basta-a-violencia-e-a-invisibilidade. Acesso em 02 de ago. de 2019.
ROSA, Ana Beatriz. Por que a violência contra mulheres indígenas é tão difícil de ser combatida no Brasil. HUFFPOST. Publicado em: 25 de nov. de 2016. Disponível em: https://www.huffpostbrasil.com/2016/11/25/por-que-a-violencia-contra-mulheres-indigenas-e-tao-dificil-de-s_a_21700429/. Acesso em 02 de ago. de 2019.
ROSCOE, Beatriz. Mulheres indígenas ganham mais visibilidade com conquistas históricas. CORREIO BRAZILIENSE. Publicado em: 26 de abr. de 2019. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2019/04/26/interna_politica,751763/mulheres-indigenas-ganham-mais-visibilidade-com-conquistas-historicas.shtml. Acesso em 02 de ago. de 2019.
ROSSI, Marina. “Dizer que nós mulheres indígenas não enfrentamos violência de gênero é mentira”. El País. Publicado em: 28 de abr. de 2019. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/04/26/politica/1556294406_680039.html. Acesso em 02 de ago. de 2019.
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